Rússia/Cimeira dos BRICS reúne líderes mundiais à volta de Putin
(ANG) – A cimeira dos BRICS arrancou, terça-feira, em Kazan, na Rússia e Vladimir Putin procura reforçar alianças estratégicas e mostrar o suposto fracasso das sanções ocidentais decorrentes do conflito na Ucrânia.
Pela primeira vez, a cimeira conta com a presença de novos membros: Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos, Egipto, Irão e Etiópia. “Estados que têm divergências profundas entre si”, sublinha o investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, Carlos Gaspar.
RFI: Esta é uma cimeira marcada pela ausência de Lula da Silva, que tem tido um papel dúbio, sobretudo quanto à guerra na Ucrânia. Vladimir Putin não esteve presente na cimeira na África do Sul o ano passado por causa de um mandato de captura internacional, e conseguiu fazer com que esta cimeira decorresse este ano na Rússia. O que é que se pode esperar desta cimeira?
Carlos Gaspar: O essencial da cimeira é a Rússia poder demonstrar que consegue reunir à volta do Presidente Putin um número importante de dirigentes. Em primeiro lugar, obviamente, o seu principal parceiro, o secretário-geral do Partido Comunista da China, que está presente, mas também o primeiro-ministro indiano Modi, está em Kazan, tal como está o novo Presidente do Irão, o Presidente da África do Sul e Lula está ausente, aparentemente por razões médicas.
O Secretário-Geral das Nações Unidas pela primeira vez, foi convidado e é esperado pelo menos, a agência russa indica que está marcada uma reunião entre ele e o Presidente Putin para tratar dos vários conflitos internacionais e a sua presença, obviamente, seria importante nesta cimeira, que é a primeira cimeira dos BRICS alargados. Os BRICS foram constituídos em 2006, por iniciativa da Rússia e da China, com a Índia e o Brasil. Depois, a África do Sul juntou-se ao grupo cinco anos depois, mas em Janeiro deste ano houve um primeiro grande alargamento a outros Estados relevantes do Médio Oriente, da África e da América Latina. O alargamento inicial previa a participação da Argentina, que, entretanto, depois das eleições, desistiu de pertencer aos BRICS. A Arábia Saudita, que ainda não ratificou a sua participação dos BRICS, mas também a Etiópia, o Egipto, o Irão e os Emirados Árabes Unidos. Ainda não é claro a que nível é que estes novos países se vão representar, excepto no caso do Irão, que envia o seu novo Presidente. A Etiópia e o Egipto, estão à beira de um conflito por causa da nova barragem que a Etiópia está a fazer e que vai condicionar os fluxos do rio Nilo e também por causa das suas divergências no Sudão.
Esta cimeira é uma cimeira que reúne uma série de Estados que têm divergências muito profundas entre si. Desde logo, a China e a Índia também são um caso evidente e o Irão e a Arábia Saudita são outro. Nesse sentido, é uma colecção de estados sui generis que aceitam estar numa cimeira e mesmo numa organização comandada pelas principais potências revisionistas: a China e a Rússia, mas mantém a sua liberdade e a sua autonomia em todas as dimensões relevantes da política internacional e têm conflitos importantes entre si, sendo que os BRICS não contribuem ou até agora não contribuíram, tal como a Organização de Cooperação de Xangai também não contribuiu, para resolver os conflitos graves que opõem os seus membros entre si.
Como é que esta adesão de novos membros influência a dinâmica de poder entre os blocos ocidentais e oriental? E que implicações é que tem esta expansão no equilíbrio do poder global? Que impacto é que, portanto, pode ter nas relações destes países com os Estados Unidos e com a Europa?
Em princípio, não tem nenhum impacto relevante. Os BRICS não formam um bloco. São uma colecção heterogénea de Estados, onde há um centro forte composto pela coligação entre a Rússia, a China e o Irão. Mas os outros Estados; a África do Sul, o Brasil e a Índia são potências intermédias que, de certa maneira, procuram uma equidistância entre as potências revisionistas, a China e a Rússia e os Estados Unidos, por outro lado, com os seus aliados ocidentais. Não tomam partido nem por um lado nem por outro, ou tentam não tomar partido nem por um lado, nem por outro, naquilo que são as principais clivagens internacionais – esse é um padrão de comportamento forte na diplomacia indiana, também do lado do Brasil ou do Egipto, que tem uma longa tradição, provavelmente beneficia o estatuto internacional dessas potências intermédias, do lado da Rússia e da China. O argumento é de que estão a construir uma nova ordem internacional, mas não é nada evidente que os seus parceiros dos BRICS fizessem parte de uma ordem alternativa. à ordem internacional das Nações Unidas.
O Kremlin anunciou que o Putin e Guterres têm encontro marcado para depois de amanhã, quinta-feira. O Secretário-Geral das Nações Unidas não vai à Rússia desde 2022 e pergunto-lhe o que é que procura Putin neste encontro? O que é que procura António Guterres e quais é que são as expectativas da comunidade internacional neste encontro agendado para quinta-feira?
Teremos de ver primeiro se ele efectivamente se confirma. É verdade que a Rússia e a China, que são os pilares dos BRICS, são dois membros do Conselho de Segurança das Nações Unidas. Mas, evidentemente, um encontro entre o Secretário-Geral das Nações Unidas e o Presidente da Rússia, depois do Secretário-Geral das Nações Unidas ter recusado ir à Cimeira da Paz, organizada pela Ucrânia, na Suíça, seria, obviamente, um sinal político forte que diz respeito, evidentemente, apenas à posição do Secretário-Geral das Nações Unidas. Ainda não há uma confirmação definitiva.
Qual é que é o papel da China na cooperação com a Rússia? A crescente dependência mútua entre Moscovo e Pequim pode estar a mudar a natureza da liderança dentro dos BRICS.
Há uma iniciativa importante da Rússia e da China que querem ter à sua volta estas potências intermédias, mesmo que seja apenas numa cimeira que vale o que vale. É uma demonstração, apesar de tudo, que o isolamento da Rússia, mesmo depois da invasão da Ucrânia, é um isolamento muito relativo e que não inclui uma parte importante das potências intermédias, como a Índia, o Brasil ou a África do Sul – isso é o mais importante.
A relação entre a China e a Rússia é uma relação que tem uma forte convergência que se acentuou desde a invasão da Ucrânia pela Rússia e que pode formar, efectivamente, para todos os efeitos, uma coligação das potências revisionistas que contrabalança a posição dos Estados Unidos e dos seus aliados na política internacional e a sua capacidade para chamar à sua volta altos dirigentes destas potências intermédias é um marco importante para a sua reputação internacional, mesmo que não tenha outras consequências.
Vladimir Putin vai usar da cimeira, a seu ver, para alegar que as sanções ocidentais contra a Rússia falharam. E até que ponto é que o apoio dos BRICS pode mitigar estes efeitos económicos e diplomáticos das sanções?
Insisto mais uma vez, os BRICS não são nem um bloco, nem uma aliança formal, nem um conjunto de Estados que tenham entre si uma parceria estratégica. Todos estes Estados têm as suas próprias políticas e incluindo quanto às sanções, a China tem apoiado a Rússia, designadamente no domínio económico e financeiro, mas não há nenhuma evidência, até agora, de que a China, ao contrário do Irão ou da Coreia do Norte, tenha enviado, tenha vendido armas para a Rússia depois da invasão da Ucrânia em violação das sanções internacionais.
Estes Estados não violam as sanções internacionais contra a Rússia. Alguns deles são importantes para, apesar de tudo, comprarem os produtos energéticos da Rússia. É o caso, designadamente da Índia, como é o caso da China. Mas não há, obviamente, uma violação maciça das sanções contra a Rússia. Trata-se de demonstrar que não há um isolamento diplomático da Rússia, apesar de a Rússia ter violado todas as disposições fundamentais da ordem internacional das Nações Unidas quando invadiu a Ucrânia.
No plano económico, está também a vontade de encontrar uma alternativa ao dólar. Pergunto-lhe que alternativa pode haver ao dólar e qual é a importância deste plano económico por parte dos BRICS?
É sobretudo uma estratégia. Do lado da China, Rússia tem uma economia relativamente menor do volume da economia russa é qualquer coisa comparável a Itália ou a Espanha. Mas a China representa um volume importante e a China tem tentado que as suas relações, as suas trocas económicas com outros países, designadamente com a Rússia, se façam nas suas próprias moedas nacionais e não em dólares. É uma tentativa que a China está a seguir há vários anos, mas que até agora tem resultados relativamente pequenos, uma vez que o dólar continua a ser a moeda de referência em 80% das trocas económicas à escala global.
O que é que uma alternativa ao dólar pode criar? Qual é que é o interesse de haver uma alternativa a esta moeda?
A China e a Rússia, mas sobretudo a China, quer criar um sistema económico alternativo ao sistema económico, à economia aberta, liderada pelos Estados Unidos, como quer criar uma ordem alternativa à ordem internacional criada pelos Estados Unidos. É um trabalho de décadas e é uma estratégia de longo prazo para demonstrar que há uma alternativa. E, neste domínio, as relações com as potências intermédias são naturalmente importantes, muito embora os resultados até agora na parte financeira sejam muito decepcionantes para agir, de uma vez que a parte do dólar nas trocas económicas internacionais continua a ser dominante.
ANG/RFI