Historial do monumento Mártires de Pindjiguiti em Bissau
Em 1979 é inaugurado o monumento aos Mártires de Pindjiguiti no local aproximado das ocorrências. A inauguração coincide com a organização de um Simpósio internacional sobre o “Significado Político do Massacre de Pindjiguiti”, no qual Aristides Pereira discursou durante uma hora, considerando que “3 de Agosto de 59 foi precisamente a face oposta à tentativa dos colonialistas em travar a marcha da história do povo”, provocando exatamente a reação oposta e tornando-se por isso “no marco estratégico na luta contra o colonialismo”viii. Este discurso seria publicado pelo PAIGC com o título “Materializar os ideais dos Mártires de 3 de Agosto”, consolidando a construção da memória pública do massacre pelo partido.
A 3 de Agosto de 1959, os trabalhadores do porto de Pindjiguitiii, em Bissau, organizaram uma greve reivindicando um aumento de salários. Marinheiros, estivadores e trabalhadores das docas, particularmente aqueles que trabalhavam para a Casa Gouveia, um monopólio comercial intermediário do grupo CUF (Companhia União Fabril), foram violentamente reprimidos por funcionários coloniais, polícia e militares, e alguns civis, repressão esta que viria a resultar em cinquenta mortos e cerca de uma centena de feridos. Esta não foi a primeira greve dos trabalhadores do porto de Bissau. Já em 6 de Março de 1956 tinham existido confrontos entre a polícia e os trabalhadores, os quais, pelos mesmos motivos, organizavam então uma greve. Nessa altura, porém, apesar de algumas detenções, a violência foi contida e os detidos acabariam por ser libertados por ordem do Governador Mello Alvim (Silva, 2006).
Segundo os relatos dos sobreviventes e de outras testemunhas – entre as quais Luís Cabral e Carlos Correia, ambos funcionários da contabilidade da Casa Gouveia e futuros líderes da Guiné-Bissau independente –, perante a irredutibilidade do gerente António Carreira, recusando atender as reivindicações dos trabalhadores, estes resolveram avançar com a greve planeada, concentrando-se no cais e parando toda a atividade. Segundo Luís Cabral, face à ameaça do uso da força, “os trabalhadores em greve fecharam o portão de acesso ao cais de Pijiguiti, apanharam tudo quanto podia servir para se defenderem e aguardaram (…) poucos minutos depois ouviam-se os primeiros tiros: os soldados e a polícia tinham acabado de romper a frágil barragem do portão e penetravam no recinto do cais, atirando impiedosamente contra os grevistas, que, a princípio, ainda tentaram defender-se. Cedo, porém, depois de verem cair muitos companheiros, compreenderam que, diante da cruel realidade, a única solução era procurar fugir do cais, para escapar à morte” (Cabral, 1984). Após a repressão, vários grevistas e simpatizantes nacionalistas foram detidos, alguns torturados pela PIDE, numa frenética caça aos cérebros que estariam por detrás da greve, considerada como algo impossível de ser organizado por indígenas analfabetos.
A atitude do gerente Carreira pode ser encarada como uma demonstração de um poder imune a pressões indígenas, remetendo para quando lhe conviesse o aumento de salários que teria já sido aprovado pela CUF, e é reveladora do contexto de exploração económica e de sujeição política na Guiné. O modelo de controlo económico na Guiné desde sempre assentou fundamentalmente na exploração comercial da atividade existente, desde o tráfico de escravos às produções agrícolas. Para além do controlo da produção agrícola, das receitas das exportações, das receitas do imposto de palhota, era esperado, desta colónia, que garantisse a importação de bens como vinho e têxteis (Galli e Jones, 1987: 38). Neste contexto, o poder de empresas como a Casa Gouveia era incomensurável. Além disso, apenas recentemente, após a 2ª Guerra Mundial, o trabalho forçado tinha começado a ser substituído pelo trabalho assalariado, baseado no entanto, em salários muito baixos (por exemplo, os trabalhadores do porto recebiam parte do salário em senhas para produtos que funcionavam como forma de escoamento para a própria Casa Gouveia) e condições degradantes assentes no autoritarismo, na discricionariedade e na aplicação de castigos de vária ordem.
A repressão de Pindjiguiti acontece numa altura em que o Estatuto do Indigenato continuava ainda em vigor mas também em que os movimentos nacionalistas da Guiné começam a organizar-se com maior intensidade, incentivados pelo contexto internacional mais favorável às independências africanas. Embora existam diferentes versões sobre qual dos movimentos teria sido realmente mais inspirador da greve (Amado, 2006; Silva 2006), é relativamente consensual que algum trabalho de consciencialização e mobilização política tenha tido um papel relevante na organização da mesma.
Embora as caraterísticas desta repressão – menor expressividade do número de mortos por comparação com acontecimentos violentos em outras colónias e o facto de a violência irromper como resposta a uma greve e não de forma premeditada – tenham levado, por vezes, ao questionamento da sua denominação como massacre, a verdade é que os massacres não são fenómenos uniformes. Os acontecimentos de Pindjiguiti constituíram, por um lado, uma expressão real de uso excessivo da violência contra civis sem possibilidade de defesa, com requintes de teatralização desse excesso – são exemplos disso a referência a um comandante militar que teria atirado sobre cada uma das cabeças daqueles que se haviam refugiado no mar ou ainda ao facto de apenas a corajosa reivindicação das mulheres junto do Palácio do Governador ter impedido que os corpos fossem queimados e acabassem por ser restituídos às famílias – precisamente procurando neutralizar potenciais resistências ao colonialismo através do medo instigado pelo terror da violência sem restrição. Por outro lado, estes acontecimentos revestem-se de uma carga simbólica que viria a revelar-se fundamental na construção social e política do martírio e do heroísmo dos povos da Guiné como fundamentos da gesta de resistência e de libertação e da construção do Estado e da Nação.
Os acontecimentos do 3 de Agosto foram uma lição histórica para o nosso povo africano e para a direção do nosso partido (Cabral, 1965). A revolta e o massacre de Pindjiguiti seriam desde logo encarados e apresentados como o momento charneira que conduziria à reorientação do movimento nacionalista, e em particular do PAIGC, para a luta armada e para uma ação centrada na mobilização nas zonas rurais, em lugar dos centros urbanos, onde o poder colonial facilmente poderia conter as ações. A justificação da luta armada como única estratégia viável, em 1961-63, baseia-se na demonstração da falta de abertura do poder colonial que Pindjiguiti comprovava. São ainda frequentes as referências ao massacre, em memórias escritas e documentos de análise histórica, como o momento em que vários resistentes nacionalistas ganharam ou aprofundaram a sua consciência política e/ou iniciaram o seu percurso de clandestinidade: Domingos Ramos, Carlos Correia, Luís Cabral, são alguns dos exemplos.
Ao mesmo tempo, este percurso nacionalista pós-Pindjiguiti significa ainda o forjar de uma resistência moderna ao colonialismo, assente fundamentalmente no princípio da unidade entre povos e que procura diferenciar-se das resistências passadas, mobilizadas, muitas vezes, através de solidariedades étnicas. Inúmeras revoltas tinham ocorrido entre as décadas de 1920 e 1960, assim como foram constantes várias formas de resistência pacífica (fuga aos impostos, fuga ao trabalho forçado, boicotes, emigração para zonas remotas, queima das palhotas) (Forrest, 2003). No entanto, Pindjiguiti surge simbolicamente como o início de uma resistência que, ao contrário das outras, foi bem-sucedida, expulsando o poder colonial. Esta ideia é sintetizada num poema de Hélder Proença com referência aos mártires: “e o seu sangue floriu no 24 de Setembro [data da proclamação da independência] / secando as flores negras do imperialismoiii.”
A Liberdade nasceu no Pindjiguiti !!!iv. Após a independência, a memória de Pindjiguiti seria mobilizada como um dos símbolos e fundamentos do Estado independente, indissociável do Partido, e, uma vez mais, da necessidade de unidade. A independência é celebrada como uma reposição da justiça que honra os mártires do colonialismo, com enorme destaque para as vítimas do massacre. É assim que o 3 de Agosto é declarado feriado nacional e que, entre 1975 e 1980, é levada a acabo uma série de iniciativas que consolidam a centralidade do imaginário do massacre.
As celebrações do feriado nacional, neste período, são vividas como momentos de grande intensidade, com enorme destaque e desenvolvimento na imprensa, contando com a presença dos sobreviventes, os quais são chamados a dar o seu testemunho às novas gerações, incorporadas na JAAC – Juventude Africana Amílcar Cabral. Contam ainda com a participação de convidados internacionais, nomeadamente representantes de outros movimentos de libertação das ex-colónias portuguesas. Nos discursos de líderes guineenses e cabo-verdianos, tal como nos dos convidados, os marinheiros de Pindjiguiti incarnam o sacrifício de todos os outros povos, também eles massacrados em Mueda, Baixa do Kassange, Batepá ou até mesmo Wuatuay (Timor-Leste), acontecimentos que testemunham uma violência colonial partilhada e os laços estabelecidos pela luta internacionalistav.
Ao mesmo tempo, Pindjiguiti surge associado à consolidação da lealdade à luta reinterpretada como a continuação do projeto político do PAIGC, “o único partido legítimo representante do nosso povo tanto da Guiné como de Cabo Verdevi”. Trair a construção da “Pátria guineense-caboverdeana” torna-se sinónimo de trair “todos os sacrifícios consentidos”, a “bravura, com tanta grandeza e coragem que hoje nos dá uma força nova, uma grandeza nova para prosseguir”vii.
Em 1979 é inaugurado o monumento aos Mártires de Pindjiguiti no local aproximado das ocorrências. A inauguração coincide com a organização de um Simpósio internacional sobre o “Significado Político do Massacre de Pindjiguiti”, no qual Aristides Pereira discursou durante uma hora, considerando que “3 de Agosto de 59 foi precisamente a face oposta à tentativa dos colonialistas em travar a marcha da história do povo”, provocando exatamente a reação oposta e tornando-se por isso “no marco estratégico na luta contra o colonialismo”viii. Este discurso seria publicado pelo PAIGC com o título “Materializar os ideais dos Mártires de 3 de Agosto”, consolidando a construção da memória pública do massacre pelo partido.