Balanço/”2023 ano de novos conflitos, atropelos aos Direitos Humanos e crises em África”- RFI
(ANG) – O ano de 2023, prestes a terminar, será lembrado como um momento de dor em que o mundo continuou a sentir os efeitos da guerra na Ucrânia e agora também no Médio Oriente, referiu a Rádio França Internacional(RFI), no seu balanço anual.
Segundo a RFI, em África, estas crises não deixaram de ter impacto designadamente em termos de aumento do custo de vida, o continente tendo visto igualmente surgir ou ressurgir novos focos de instabilidade.
Um dos pontos do continente onde a situação tem sido difícil é o Sudão onde, em Abril, um conflito entre o chefe do exército Abdel Fattah al-Burhane e o seu antigo adjunto, doravante rival, o general Mohamed Hamdane Daglo degenerou em guerra civil. Até ao momento, de acordo com a ONU, este conflito que se segue a anos de instabilidade e a um golpe de Estado em 2021, causou pelo menos 12 mil mortos e mais de 6 milhões de deslocados.
Também na Etiópia, a instabilidade continuou a ser uma realidade neste ano de 2023, com o surgimento de um conflito entre o governo central e a região Amhara no norte do país. Situações particularmente preocupantes do ponto de vista do especialista do Corno de África, Manuel João Ramos.
“Tanto o que está a acontecer no Sudão, como na Etiópia, é muito grave e é trágico (…), são duas guerras que passam muito sob o radar mediático. Parece que as pessoas não sabem o que está a acontecer. Estamos todos focados nos efeitos mediáticos da guerra da Ucrânia e sobretudo, hoje em dia, no conflito em Gaza. A verdade é que estes dois conflitos que, tendo motivos e factores internos, são também eco de convulsões geoestratégicas muito importantes. O Corno de África fica na margem ocidental do Mar Vermelho que é hoje um centro de uma espiral de conflito e de tensão extrema, como tem sido noticiado, com os ataques iemenitas a navios mercantes”, observa Manuel João Ramos.
Outra tragédia marcou 2023, desta vez em Marrocos onde na noite do 8 de Setembro, um violento terramoto atingiu a região de Marraquexe, causando cerca de 3.000 mortos e mais de 5.600 feridos. Na altura deste acontecimento, Mama Saliu Tala Djob, secretário-geral da Associação de Estudantes e Estagiários Guineenses no Reino de Marrocos falou com a RFI e deu conta da situação então vigente. “De uma forma geral, a população está aflita. Pode encontrar população na rua, a dormir no acampamento ou no jardim”relatou o estudante dando todavia conta de um forte movimento de solidariedade para acudir os sinistrados.
Entretanto, na África do oeste, 2023 marcou o alastramento da instabilidade já vigente em alguns países da região.
No dia 26 de Julho, um grupo de militares tomou o poder no Níger, aprofundando um pouco mais a fractura na África do Oeste entre os países liderados por poderes civis e os regimes resultantes de golpes de Estado militares. Uma fractura que se materializou nomeadamente com a assinatura em Setembro de um acordo de defesa mútua entre o Níger, o Mali e o Burkina Faso, todos eles países dirigidos por juntas militares. Em entrevista à RFI, o analista guineense Armando Lona falou em “região em clara ebulição”.
Ao considerar que os recentes golpes“testemunham uma certa vontade pela mudança na África ocidental”, o analista nota que “assistimos também a contestação de natureza política e social em diferentes países, nomeadamente no Senegal que tem sido um país animado por um movimento político-social através da liderança do opositor Ousmane Sonko que, neste momento, está na cadeia”.
Na vizinha Guiné-Bissau, este ano foi marcado pelas legislativas de Junho e a vitória da coligação PAI Terra Ranka, com a instalação de um governo e de um parlamento resultantes desta nova configuração. Mas a 4 de Dezembro, o Presidente Umaro Sissoco Embalo decidiu dissolver o parlamento depois de confrontos entre elementos da guarda nacional e membros do batalhão presidencial na madrugada de 1 de Dezembro que consubstanciaram, na sua óptica, uma“tentativa de golpe de Estado”.
Depois de um momento de esperança, veio“um retrocesso em termos de Estado de Direito democrático”, diz Fodé Mané para quem este momento representou um “desrespeito da vontade popular” porque “o parlamento que representava a vontade popular foi impedido de funcionar através de um acto ilegal”.
Ao tecer críticas à reacção prudente da CEDEAO a respeito desta nova crise, o activista considera que “esta instituição existe formalmente” mas que não é “nem dos povos, nem dos governantes, mas de um núcleo restrito de pessoas que sequestraram o poder nos seus países”.
Noutras latitudes, em Moçambique, deram-se em 2023 dois momentos marcantes, nomeadamente a morte em Março do rapper Azagaia. As marchas de homenagem ao artista que era também um activista muito crítico em relação ao poder, foram severamente reprimidas pela polícia, tendo havido registo de vários feridos.
Meses depois, em Outubro, por altura das autárquicas, o país conheceu um segundo momento de tensão, com um forte movimento de contestação aos resultados oficiais que deram a vitória ao partido no poder na maioria das 65 autarquias do país, apesar de indícios de irregularidades. Adriano Nuvunga, dirigente do Centro Para Democracia e Direitos Humanos, guarda deste ano a “imagem de abuso e violação dos Direitos Humanos”.
Ao recordar os incidentes ocorridos durante as marchas de homenagem a Azagaia, o activista social mostra-se chocado com a“forma como o Estado moçambicano reprimiu usando gás lacrimogéneo contra os manifestantes que simplesmente estavam a celebrar a vida e a obra do Azagaia”. Mesmo choque é expressado por Adriano Nuvunga quando alude às manifestações de contestação dos resultados das autárquicas de Outubro e recorda “a forma como as autoridades, incluindo o Presidente da República reagiu, dando a ideia de que os culpados eram os manifestantes e não a polícia que agiu à margem da lei”.
Noutro aspecto, o activista também evoca a situação de Cabo Delgado onde as tropas moçambicanas apoiadas por militares do Ruanda e de outros países da região têm combatido os grupos terroristas activos desde 2017 naquela região do extremo norte do país. Ao dar conta de algumas vitórias neste domínio, Adriano Nuvunga considera todavia que“não há sinais claros de que se está a melhorar o sector da segurança em Moçambique. Com a corrupção, os soldados não têm aquilo de que necessitam para fazer o seu trabalho (…). Isso faz com que esta relativa estabilidade não se consiga consolidar”.
Em Angola, este foi mais um ano de dificuldades, com a diminuição do poder de compra e greves no sector público. Contudo, a recente visita do Presidente Angolano aos Estados Unidos suscitou a esperança de um impulso económico no país, refere o líder associativo Rui Mangovo.“Fala-se de mais de 2 biliões de Dólares que os Estados Unidos pretendem investir em Angola, para o Corredor do Lobito, para a reabilitação daquela infra-estrutura e também no âmbito das energias renováveis em que os Estados Unidos também estão a estreitar a sua parceria com Angola”, observa Rui Mangovo.
“Resiliência”também poderia ser a palavra-chave para descrever o ano de 2023 em Cabo Verde, onde a população continua a enfrentar o aumento do custo de vida. “Tudo aumentou”, diz Daniel Medina, director da Faculdade de Ciências Sociais, Humanas e Artes da Universidade de Cabo Verde. “É um povo que não se sabe como é que tem conseguido sobreviver com uma mensalidade mínima de 13 a 15 mil Escudos por mês (entre um pouco mais de 116 e 134 Euros). Quando a gente diz isso a um estrangeiro (…), as pessoas põem as mãos à cabeça”, diz o universitário.
Em São Tomé e Príncipe, a estagnação e as dificuldades económicas continuaram a ser o quotidiano da população, segundo o sociólogo são-tomense Olívio Diogo.“Foi o ano em que houve uma promessa directa para que houvesse um acordo de cerca de 150 milhões (de Dólares) com o FMI que não se concretizou porque o Estado são-tomense não consegue chegar a uma plataforma de entendimento com o FMI para se concretizar este aspecto”, refere o estudioso.
Noutro quadrante, ao notar o aumento importante do custo de vida no seu país, o sociólogo também enfatiza que “este é um ano, foi o ano em que mais são-tomenses saíram do país. São pessoas que, muitas delas, são quadros da educação, são quadros do Ministério da Saúde (…). Não podemos deixar de sublinhar isso porque é a economia, são aspectos sociais, é o aspecto educacional, é a saúde, que se ressentiram bastante com esta situação de emigração”, sublinha ainda o estudioso que alimenta a esperança de dias melhores para 2024, nomeadamente com a concretização do acordo com o FMI e a implementação de medidas para estancar a onda de emigração que o país tem conhecido nestes últimos meses.ANG/RFI